terça-feira, 7 de agosto de 2018

LOUÇA DE BARRO PRETO DE GONDAR:

NEM TUDO SÃO ELOGIOS!


Um documento manuscrito de 1803, “A Memória Económica-Agrícola de Riba-Tâmega”, assinado por Francisco de Azevedo Coelho de Magalhães, pinta de negro a louça de barro preto de Gondar, que classifica de "muito má", "muito grossa" e “indigna”.

Lê-se no documento:

“... numa grande parte do concelho de Gestaço que confina com o rio Tâmega, padecem um gravíssimo prejuízo a lavoura, a sociedade e as Rendas Reais pela “fábrica” – “melhor dissera tráfico” – da indigna loiça que ali se trabalha.
Deixam-se de adubar as terras para crescerem os matos a fim de haver lenha para os fornos de cozer loiça. Gasta-se imenso tojo ou lenha e cansam-se ou fatigam-se os gados – que deveriam estar ocupados na lavoura – no amassar e preparar dos barros. Os ditos povos possuem “imensas campinas” de tojo – que deveriam ser semeadas de “grãos” – não pagando assim os tributos que recaem sobre a produção das terras, sendo então menos onerados do que se agricultassem as terras. Os de Gestaço, que se ocupam daquele ofício (e causam imenso prejuízo à madeira), empregam no fabrico das loiças “quase todos os braços” e os gados, “já em a manobrarem, já em a conduzirem para diferentes terras e feiras”. Esta produção, que ocupa os braços e gados necessários à agricultura, deveria ser proibida – com excepção da “telha que se faz junto ao Cávado e Tâmega” e que é excelente. Inversamente, a “loiça deveria ser proibida”: quer porque é muito má e muito grossa, quer porque é tão ou mais cara que a da fábrica de Aveiro, que é muito melhor. Esta loiça, quando se tornarem navegáveis os rios desta província, “até poderá ficar em melhor conta do que a de cá”. Como a loiça da dita fábrica, “ainda que melhor, não é capaz de transportar para fora do reino, é justo que para a sua subsistência se lhe dê consumo”. Só esta razão seria suficiente, ainda segundo o autor, para levar avante a sua tese: não se deixar fabricar “esta indigna loiça de Ovelhinha”. (1)

Louça de barro preto de Gondar

Modelando o barro (Barro preto de Gondar)

soenga (barro preto de Gondar)

Comentário: É manifesta a profunda ignorância que o autor, Francico de Azevedo Coelho de Magalhães, revela em relação aos locais, processo de fabrico e comercialização da louça de barro preto de Gondar, a saber:
1- Destaca Ovelhinha como o centro produtor desta louça, quando, na realidade, esse centro era Vila-Seca, a par dos lugares do Rio, Outeirinho e Corujeiras. Ovelhinha ocupava um lugar secundário.
2- Fala em “fornos de cozer loiça”, quando, pelo que sabemos, o processo utilizado sempre foi o de “cozedura em soenga” e não em fornos.
3- Depreende-se da exposição do autor que as pessoas abandonavam o amanho das terras porque a olaria lhes traria maiores rendimentos. Ora, sabe-se que a venda das loiças produzidas por estes esforçados oleiros apenas lhes permitia um nível misérrimo de vida, associando, muitas vezes, o trabalho na arte com o amanho de um pouco de terra.
4- O autor diz que "se empregam neste ofício quase todos os braços e gados", o que não é verdade já que as louças eram, a maior parte das vezes, levadas para as feiras e outros locais de venda por mulheres, em cestos que transportavam à cabeça.

(1)- Estêvão, João Antunes, “A Memória Económico-Agrícola de Riba-Tâmega” (c. 1803), in Actas do II Congresso Histórico de Amarante, I vol., Tomo II, Câmara Municipal de Amarante, 2009, pp.199-200.

Miguel Moreira (texto)
Fotografias de Mariana Sá