quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A Serra do Marão por José Saramago

 

Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos." José Saramago

Serra do Marão

 "Atravessar a serra do Marão, qualquer o pode fazer, mas quando se sabe que Marão significa Casa Grande, as coisas ganham o seu aspecto verdadeiro, e o viajante sabe que não vai apenas atravessar uma serra mas entrar numa casa.

Que faz qualquer viajante ao entrar? Tira o chapéu, baixa ligeiramente a cabeça, se a traz ao léu, enfim, as devidas mostras de respeito. Este viajante torna-se visitante, e entra, depois de convenientemente lavada a alma, como no capacho se limpam os pés. O Marão não é a aguda fraga, o penhasco vertiginoso, o desafio para alpinistas. Já foi dito que é uma casa, e as casas são para os homens morarem nelas. A estas alturas toda a gente pode subir. Poderá?

Serra do Marão


Os montes sucedem-se, tapam o horizonte, ou rasgam-no para outro monte ainda maior, e são redondos, enormes dorsos de animais deitados ao sol e para sempre imóveis. Nos fundos vales ouve-se o cachoar da água, e das encostas, por todos os lados, escorrem torrentes que depois acompanham a estrada à procura de uma saída para o nível abaixo, de patamar em patamar, até caírem de alto ou mansamente desaguarem na corrente principal que é apenas afluente de afluente, águas que tanto podem ir dar ao Corgo, que ficou lá para trás, como ao Douro, muito para sul, como ao Tâmega, que espera o viajante.

Serra do Marão


E há as florestas. Torna o viajante a dizer-se afortunado por estar viajando no Outono. Não se descreve uma árvore. Como se há-de descrever uma floresta? Quando o viajante olha a encosta do monte fronteiro, o que vê é os altos fustes dos troncos, as copas redondas ou esgalgadas, escondendo o húmos, o feto, o brando mato destes lugares. Assim fica sabendo que viaja, ele também, no invisível, tornou-se gomo, duende, bichito que vive debaixo da folha caída, e só torna a ser homem quando, de londe em longe, a floresta se interrompe e a estrada corre a céu aberto.

Serra do Marão

E sempre o rumorejar das águas, frigidíssimas, e as núvens rolando no céu, é um murmúrio que passa, como serão aqui as trovoadas?

Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos."

José Saramago, Viagem a Portugal, editorial Caminho, Lisboa, 1995, p. 29-30.



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