segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Saramago viaja pela Serra da Aboboreira

 

"(O viajante) vai ali à pré-história e volta já, cinco mil anos lá para trás..."

Saramago, in "Viagem a Portugal"

“...O caminho é uma tosca e arruinada carreteira, com profundos sulcos cavados pelas torrentes vindas do alto, e o viajante teme um acidente, uma avaria. Contudo, persevera, e tem a sua recompensa quando a ascensão termina num quase raso planalto. Os dólmenes não estão à vista. Agora é preciso avançar pelo mato dentro, há uns delgados carris que se interrompem, maneiras de negaça que o deixam perpelexo. É um quebra-cabeças malicioso, traçado em monte deserto para obscuros fins. O viajante avança pelo mato, tem de encontrar a mina de ouro, a fonte milagrosa, e quando já lança pragas e imprecações (bem está que o faça neste cenário inquietante) vê na sua frente a mamoa, o primeiro dólmen meio soterrado, com o chapéu redondo assente sobre esteios de que só se vêem as pontas, é como uma fortificação abandonada.


Anta de Chã da Parada - Serra da Aboboreira

 
O viajante dá a volta, aí está o corredor, e lá dentro a câmara espaçosa, mais alto todo o conjunto do que pelo lado de fora parecia, tanto que o viajante nem precisa curvar-se, e de baixo nada tem. Não há limites para o silêncio. Debaixo destas pedras, o viajante retira-se do mundo. Vai ali à Pré-História e volta já, cinco mil anos lá para trás, que homens terão levantado à força de braço esta pesadíssima laje, desbastada e aperfeiçoada como uma calote, e que falas se falaram debaixo dela, que mortos aqui foram deitados. O viajante senta-se no chão arenoso, colhe entre dois dedos um tenro caule que nasceu junto de um esteio, e, curvando a cabeça, ouve enfim o seu próprio coração.”

José Saramago, Viagem a Portugal, editorial Caminho, Lisboa, 1995, pág. 32.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A Serra do Marão por José Saramago

 

Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos." José Saramago

Serra do Marão

 "Atravessar a serra do Marão, qualquer o pode fazer, mas quando se sabe que Marão significa Casa Grande, as coisas ganham o seu aspecto verdadeiro, e o viajante sabe que não vai apenas atravessar uma serra mas entrar numa casa.

Que faz qualquer viajante ao entrar? Tira o chapéu, baixa ligeiramente a cabeça, se a traz ao léu, enfim, as devidas mostras de respeito. Este viajante torna-se visitante, e entra, depois de convenientemente lavada a alma, como no capacho se limpam os pés. O Marão não é a aguda fraga, o penhasco vertiginoso, o desafio para alpinistas. Já foi dito que é uma casa, e as casas são para os homens morarem nelas. A estas alturas toda a gente pode subir. Poderá?

Serra do Marão


Os montes sucedem-se, tapam o horizonte, ou rasgam-no para outro monte ainda maior, e são redondos, enormes dorsos de animais deitados ao sol e para sempre imóveis. Nos fundos vales ouve-se o cachoar da água, e das encostas, por todos os lados, escorrem torrentes que depois acompanham a estrada à procura de uma saída para o nível abaixo, de patamar em patamar, até caírem de alto ou mansamente desaguarem na corrente principal que é apenas afluente de afluente, águas que tanto podem ir dar ao Corgo, que ficou lá para trás, como ao Douro, muito para sul, como ao Tâmega, que espera o viajante.

Serra do Marão


E há as florestas. Torna o viajante a dizer-se afortunado por estar viajando no Outono. Não se descreve uma árvore. Como se há-de descrever uma floresta? Quando o viajante olha a encosta do monte fronteiro, o que vê é os altos fustes dos troncos, as copas redondas ou esgalgadas, escondendo o húmos, o feto, o brando mato destes lugares. Assim fica sabendo que viaja, ele também, no invisível, tornou-se gomo, duende, bichito que vive debaixo da folha caída, e só torna a ser homem quando, de londe em longe, a floresta se interrompe e a estrada corre a céu aberto.

Serra do Marão

E sempre o rumorejar das águas, frigidíssimas, e as núvens rolando no céu, é um murmúrio que passa, como serão aqui as trovoadas?

Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos."

José Saramago, Viagem a Portugal, editorial Caminho, Lisboa, 1995, p. 29-30.